O homem era alvo de diversos inquéritos; ele chegou a tirar RG, se vacinar e até votar no lugar do primo
Mato Grosso – O Ministério Público Federal denunciou para a Justiça Federal um homem de 64 anos preso em uma operação da Polícia Federal de Sinop, no Mato Grosso. Segundo a investigação da PF, Natanael Schmidt foi preso em Primavera do Leste, no Mato Grosso, após passar quase 30 anos fingindo ser outra pessoa.
Até o dia de sua prisão, sua verdadeira identidade era uma incógnita. Apesar de portar RG, CPF, título de eleitor e até certificado de reservista, todos originais e verdadeiros, seus dados coincidiam com os de um morador da cidade de Barra do Ribeiro, no Rio Grande do Sul, e que já havia procurado a PF e reportado que existia uma pessoa se passando por ele.
Natanael se apresentava como Joselito Antunes até mesmo no momento em que foi preso. Dizia-se carpinteiro e vivia há anos circulando discretamente por cidades do Mato Grosso. Mas sob essa aparência de normalidade escondia-se uma história de farsas e crimes.
Ele havia roubado a identidade do parente e assumiu sua vida enquanto fugia de processos por dois homicídios no Rio Grande do Sul nos anos 1980.
Enquanto o falsário vivia em liberdade, o verdadeiro Joselito enfrentava dívidas, cobranças judiciais e restrições de todo tipo. Sua luta para provar sua inocência e recuperar a própria identidade — com a ajuda crucial da filha Yasmin — foi destaque de uma reportagem exibida no Domingo Espetacular, da Record, neste domingo (11).
Uma identidade clonada
O pesadelo começou em 1997, quando Joselito perdeu seus documentos em Sapucaia do Sul, no RS. Pouco tempo depois, Natanael — então foragido — usou essas informações para se registrar em Mato Grosso como se fosse o primo. Obteve RG, título de eleitor e CPF, e chegou até a emitir um novo certificado de reservista em nome de Joselito. Estava criada uma nova identidade, oficialmente reconhecida pelos órgãos do Estado.
Com essa identidade, ele cometeu diversos crimes: tentativa de homicídio em Vera–MT, abertura de contas fraudulentas, saques do FGTS, fraudes bancárias, compras em comércio local, registro de vínculos empregatícios e até vacinação com cartão do SUS. Em 2012, votou ilegalmente em Sinop–MT. Em 2019, solicitou aposentadoria e auxílio-doença junto ao INSS, em nome da vítima.
Do outro lado do país, o verdadeiro Joselito sofria as consequências. Teve contas bloqueadas, nome negativado e foi impedido de votar. “Fui acusado por crimes que nem sabia que existiam. Meu FGTS foi roubado. Minha vida congelada”, relata.
A atuação da Polícia Federal
Diante das denúncias, a Polícia Federal instaurou, em 2013, o primeiro inquérito para investigar a transferência fraudulenta do título de eleitor. O relatório final concluiu que, de fato, alguém estava se passando por Joselito — mas não foi possível identificar quem. O inquérito foi arquivado.
O mesmo ocorreu em 2018, quando a PF investigou o saque ilegal do FGTS. Apesar de autorizações judiciais para interceptações telefônicas, quebras de sigilo de dados e até pedido de prisão preventiva, o autor seguiu desconhecido. Ele era chamado por apelidos como “Bibi” e não constava em bancos de dados biométricos. Em 2020, o MPF arquivou novamente o caso por ausência de resultados.
A virada: tecnologia e perseverança
A reviravolta só veio em 2024, quando Natanael começou a trabalhar com carteira assinada em uma grande construtora em Primavera do Leste–MT. A Polícia Federal, munida de informações cruzadas com o Ministério do Trabalho, obteve um novo mandado de prisão.
Meses antes, a Polícia Civil já havia abordado o suspeito, que demonstrou dificuldade em responder perguntas básicas sobre sua documentação. Na nova abordagem feita pela PF, ele recitou com segurança todos os dados dos documentos que usava. Mesmo assim, os investigadores não recuaram.
Enquanto ele estava preso, os investigadores trabalharam para fazer a identificação das digitais do suspeito, que foram submetidas a uma análise papiloscópica. Uma troca de informações com os institutos de identificação do Rio Grande do Sul permitiu o acesso a registros antigos, ainda em papel, do primeiro RG de Natanael.
O laudo confirmou: o homem que vivia como Joselito era, na verdade, Natanael Schmidt, foragido há décadas.
Prisão e reparação
Com a identidade comprovada, Natanael foi mantido preso e denunciado pelo Ministério Público Federal por falsidade ideológica, uso de documentos falsos, estelionato e outros crimes.
“A prisão teve dois fundamentos claros: proteger a ordem pública, diante da continuidade dos crimes, e assegurar a aplicação da lei penal. Ele fugiu de processos e enganou o sistema por anos. Agora, finalmente, a verdade veio à tona”, afirmou o delegado Tiago Pacheco.
Uma filha contra o sistema
A virada no caso não teria sido possível sem Yasmin, filha de Joselito. Estudante de Direito, ela foi quem percebeu que todos os boletins de ocorrência estavam sendo feitos no estado errado. Os crimes haviam ocorrido em Mato Grosso, e não no Rio Grande do Sul.
“Comecei a estudar porque vi muitas coisas erradas. E entendi que a justiça precisa ser provocada no lugar certo. Só aí começaram a nos ouvir”, diz Yasmin.
Foi ela quem contatou a polícia no estado onde os crimes foram cometidos e abriu o caminho para a reabertura do caso. A partir daí, o trabalho da PF foi fundamental para romper o ciclo de impunidade.
Depois do caos, a reconstrução
Hoje, Joselito começa a reconstruir sua vida. Ainda precisa provar constantemente quem é, carregar documentos para se proteger de confusões jurídicas e limpar seu nome em vários órgãos. Mas pela primeira vez em décadas, ele respira com mais leveza.
“Mágoa é pesado demais. Eu quero é viver em paz. Amanhã é um novo dia”, resume.